quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Quintal Chic

Imagens: Mariane Dias.

De quintal a espaço cultural: a história do nº 739, da rua Manoel da Silva Falcão, bairro Califórnia, poderia ser sintetizada assim. Em letras garrafais e coloridas, a frase permitiria visualizar todos os caminhos, escolhas, planos e pessoas que permeiam a trajetória do Na Encolha, para assim revelar o local que, só de forma oficializada, tem 3 anos de existência. “A minha casa sempre foi um encontro de loucos”, afirma Rafael Soares, o Nike – apelido que ganhou aos 15 anos, ainda na escola –, retratando-se em seguida: “Era encontro de loucos enquanto ninguém se entendia como artista”.

Em meio aos frequentes churrasquinhos acompanhados de muito som, estavam agregadas pessoas que pensavam o teatro, a música e a arte, de forma geral. Através da rede de Nike como músico, que então era integrante da Banda Gaza – em meados de 2003, 2004 –, um link era estabelecido entre artistas da Zona Sul e Baixada Fluminense. “A gente podia fazer uma cena aqui”, foi o pensamento que brotou nas mentes daquele grupo. O “tabladinho” passou a aspirar ser transformado num palco, as bebidas, que eram compradas fora, passariam a ser vendidas no local, a parede vazia pedia uma intervenção da artista plástica Bia Araújo, que transitava naquele mesmo espaço.

Foi decidido que o terreno, que continha a casa da família, seria divido da seguinte forma: Nike ficaria com a parte de trás, sua mãe com a construção central – a casa – e a irmã com a parte da frente. A partir disso, o primeiro investimento foi feito para um “mega obrão”, reunindo recursos deixados pelo pai adotivo de Nike, com os adquiridos em um projeto realizado na França, onde participou como músico e pôde conhecer o que seria uma das grandes referências para o Na Encolha: o Favela Chic. “Eu não acreditei quando eu entrei no lugar”, exclama ele, detalhando a estrutura “favelada” e a loucura estética das coisas penduradas pela boate, em Paris. “Todo mundo estava curtindo e eu viajando”, conta Nike. Nem o glamour de estar na “cidade-luz” foi páreo para o encantamento provocado pela mistura de high tech e underground que o local proporcionara. “Eu cheguei da França, não deu dois dias e já tinha gente lá grafitando e pintando”, garante Nike, reforçando também a Lapa como influência estética para o Na Encolha. “Eu cresci indo pra lá”.

Tinta, cimento, iluminação e mão de obra foram as preocupações iniciais, que precisaram conviver com um sério tratamento médico da mãe, os estágios da graduação em direito, a gravidez da namorada e a carreira artística. “Era muita doideira em cima de uma coisa que estava começando a ser construída”, analisa o músico, sorridente ante o momento superado com louvor.

Nascido em Ipanema e criado em Nova Iguaçu, Nike representa uma mistura dos lugares por onde já morou ou transitou. Mistura esta que se reflete harmoniosamente no Espaço Cultural. Em Jacarepaguá, passou a integrar a banda Gaza, cuja maior parte dos músicos morava na Rocinha, para onde Nike se mudou. “Eu mantinha um triângulo: Rocinha, Jacarepaguá e Nova Iguaçu”, conta. Em seguida, mudou-se para Copacabana. O resultado da rede que se formava era visto nos ainda habituais encontros no quintal: “Já eram outras cabeças, era aquela molecadinha 'semifamosa' de Jacarepaguá, uma rapaziada da Rocinha, uma galera de Copacabana...”, descreve.

Bonde da obra
A cena musical e cultural, que vinha sendo estabelecida, recebeu um “velho conhecido” de Nike: Octávio Martins, o produtor internacionalmente reconhecido, que o conheceu através dos irmãos Felipe e Chicão, frequentadores do “ainda quintal”. “Negão, tu tá maluco, vamos fazer uma parada aqui”, exclamou Octávio, como se recorda Nike. A partir do incentivo do produtor, que chegou para dar um “ar profissional”, foi formada uma equipe que produzia, incansavelmente, todos os dias.

As referências estéticas foram mantidas e seguidas. Octávio, assim como os demais membros daquele “bonde da obra”, passava 24 horas de bermuda e camiseta, sem medo de lidar com a parte bruta do processo. Desses dias, guarda-se até uma lenda: “Tinha uma mangueira muito grossa, ele cortou sozinho, de machado: uma parada impossível”, relata Nike, reproduzindo o amigo com gestos. “Esse moleque é muito guerreiro, o mais guerreiro de todos. Nem eu, que era dono da casa, trabalhava como ele”.

Representantes da cultura chegavam para ser agregados: o cara do teatro, o cara do reggae, o músico de Belford Roxo... A cada dia, alguém novo era apresentado na casa. Muitos esforços, dias dedicados e árvores derrubadas depois, o espaço estava pronto. Um bar, um palco – que chegara para substituir o pequeno tablado – e um estúdio profissional para ensaios, eram algumas das novidades. O local também passou a empregar pessoas para trabalhar nos eventos e publicidade, mantendo a mesma equipe por cerca de um ano e meio. Após algumas mudanças na estrutura do grupo, por conta de empregos e faculdades, o grupo foi reduzido ao trabalho individual de Nike, que dentre as boas coisas do período com Octávio, guarda a visão empreendedora, que o permite olhar para o Espaço Cultural, como hoje está, vislumbrando seus planos futuros já concretizados.

Grades
A grande inauguração trouxe 500 pessoas, para o espaço que então suportava 300. Deu certo: foi a conclusão tirada do fato, também gerando uma reflexão sobre a criação de grades, que passariam a respeitar algumas modalidades de músicas e excluir outras. O funk, por exemplo, chegou a ser eliminado, voltando recentemente, porém, sem as comuns letras carregadas de apelo sexual. Passaram pelo Na Encolha as sessões do “Buraco Na Encolha” – parceria com o Cineclube Buraco do Getúlio, que foi reconhecida pela Ancine como uma das melhores salas de cinema independente do Rio de Janeiro –, oficinas de graffite e percussão, artistas “da gringa” e até apresentações de Stand-Up Comedy e circo, além das inúmeras vezes em que o espaço foi cedido para ensaios teatrais ou fotográficos. Tinha até um cantinho especialmente preparado para os frequentadores dormirem após os eventos, pegando o ônibus pra casa ao amanhecer.

As oficinas que chegariam mais tarde, oficializadas como Ponto de Cultura, já tinham vez no anseio existente de contribuir socialmente com os moradores. “A Califórnia é um bairro bem bacana. Um bairro saneado, urbanizado, bem evoluído e bem adiantado”, inicia Nike, “Porém, é Baixada Fluminense, né? A pobreza está lá também. Tem muita molecadinha na rua. Eu conheço os pais desses moleques, o irmão mais velho de cada um ali. E eu sentia a necessidade de fazer, pelo menos uma vez na semana, alguma coisa com eles”.

A ideia nunca foi abandonada. Tanto que, hoje, após uma recente pausa das atividades, seguida de uma reinauguração em grande estilo – que aconteceu no dia 13 de dezembro de 2009, em comemoração simultânea com o aniversário de Nike – o Espaço Cultural Na Encolha abriga a sede da ONG Laboratório Cultural. “É tanta coisa lá dentro que acaba ficando pequeno, mas ainda é um quintal grande”, alega o rapaz, cujo “sonho era ter um quintal maneiro”.

Onda na Barra
Ligado constantemente no “220”, Nike ganha o mundo mas se mantém envolvido com a cidade que abriga esse quintal. Transeunte e conectado. “Eu quero crescer aqui”, declara, reforçando: “Eu visto o quimono pro que o secretário de cultura – que é um cara que eu criei grande identificação, um cara que também aposta muito no meu trabalho –, diz: ‘Artista daqui quer tirar onda na Barra, quer morar lá, quer fazer coisas lá.’ Eu não, ao contrário. Eu faço coisas no Acre, na Austrália... mas pensando em trazer algum reflexo pra cidade, porque eu sou daqui, sou de Nova Iguaçu”.

Hoje Nike integra a banda Bloco 18, estuda Letras, ministrará aulas de Beat Boxe num dos Pontos de Cultura do Laboratório Cultural, atua na Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu e ainda está à frente do Espaço Cultural Na Encolha, juntamente com as três pessoas que fazem parte de sua equipe. “Quanto mais caminhos melhor”, aconselha com veemência. “O ruim é não ter perspectiva, que é justamente o grande problema da juventude hoje em dia”.

A agenda de 2010 do Na Encolha trará tanto eventos que se firmaram como tradição quanto novidades: o reggae ressurge nas quintas-feiras, o samba chegará para a mistura, também no meado da semana, e, a partir do dia 5 de março, será inaugurado um evento gay, passando por um “termômetro” que definirá sua periodicidade. Para além das grandes festas, de terça a sexta-feira, a parte diurna será preenchida pelo atendimento de 350 crianças no Ponto de Cultura “Arrastão Cultural”, também realizado pelo Laboratório.

Nenhum comentário:

Postar um comentário